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Capítulo 4

O caso Beco Pub

Renato Ervilha (28), entre suas as vindas e idas, estava no Mercado Sul desde 2013. Já foi evangélico e alugava uma loja do Josmar. Trabalhava com serigrafia e camiseteria no início e também realizava contidos encontros de break e hip-hop. Eventos sem álcool, montados por pequenos tablados e nas calçadas que ele mesmo reformou.

Os pequenos movimentos de Ervilha na rua do Beco ocorriam no mesmo período de existência do Espaço Cultural Mercado Sul, coletivo que também alugava lojas para difundir atividades culturais.

O produtor cultural conta que foi no Mercado Sul que ele aprendeu o verdadeiro sentido de cultura. Na época ele conhecia algumas pessoas da comunidade, como o mímico Abder Paz e o artesão Virgílio Mota, e desde então passou a morar. Inicialmente, Ervilha foi pro Beco para gerar uma grana e se sustentar, mas com o tempo, se tornou um dos realizadores culturais do local.

“O tráfico aqui já existia”, conta Ervilha. “Pensei que quanto mais movimento e rotatividade de gente trouxesse para cá, iria inibir aqueles traficantes”, diz. O produtor também cita o grande número de pessoas em situação de rua que habitavam as ruelas. Ele pediu ajuda da administração da cidade para fornecer alternativas para essas pessoas, contou que algumas delas até conseguiram voltar para suas cidades natais.

Com a ocupação, Ervilha tinha uma relação amigável com o movimento. Existia uma cooperação entre as iniciativas, empréstimo de som, por exemplo. Nos dias em que ocorriam as Ecofeiras, ele abria sua loja para vender suas camisetas.

O produtor conta que, na época que chegou em 2013, alugou o imóvel do Josmar. Após os movimentos de questionamento dos lugares pela Ocupação, ele foi atrás de saber se o dono tinha escritura do imóvel…

E em 2016, Ervilha abriu o Beco Pub, um bar voltado para o público jovem, da cultura hip hop e ritmos periféricos como o funk e o ragga.

“Comecei a ver que a minha galera, do rap e do funk, não tinha muito espaço na cidade”, diz Ervilha.

Para Abder, Ervilha é um visionário de produção cultural, visto a transformação de uma camiseteria em um pub que reunia muitas atividades, principalmente de entretenimento como shows e festas.

As festas eram verdadeiros festivais de múltiplas tribos. Muita juventude negra, LGBT e periférica do DF começaram a frequentar e colorir ainda mais o Beco. Com o tempo, as festas regadas a beats dançantes e bebidas cresceram muito.

“A relação da ocupação com o Beco Pub sempre foi muito tranquila. Tivemos poucos momentos de ruído”, conta Abder. “O grande problema da ação social que ele desenvolvia aqui é que ele não tentava fortalecer os laços comunitários”, acredita o mímico e arte-educador e integrante do MSV.

O movimento MSV estabeleceu alguns acordos com a comunidade, relembra Abder. Questão do horário até às 22h, do som, da limpeza. O horário respeita a Lei Distrital do Silêncio 4092 de 2008, que regulamenta o controle da poluição sonora e os limites máximos de intensidade da emissão de sons e ruídos.

No momento em que a comunidade começou a cobrar do Beco Pub esses acordos também, “ele ao invés de dialogar e tentar construir essa ponte com os moradores, passa a se distanciar e aumentar o tamanho dos conflitos, aí é quando isso reverbera na ocupação”, expõe o mímico.

“Começou a encher muito, e eu comecei a enxergar que eu estava incomodando e que tava sim atrapalhando alguns moradores, algumas pessoas tradicionais”, conta Ervilha para nossa equipe de reportagem.

As festa do Ervilha dão o que falar até hoje. Até em âmbitos judiciais, como o aberto por Josmar, proprietário das lojas ocupadas. “O que existe hoje de problemas apontados dentro do processo judicial que a ocupação responde, 90 % deles estão ligados a essa ação cultural que o Beco Pub fez” explica Abder.

As reclamações de vizinhos são, em base, sobre vários argumentos. Gente que fazia suas necessidades fisiológicas nas portas, fumaça de cigarros, drogas e som alto. Ervilha conta que não tinha como ter controle do que as pessoas consumiam. Conta que nunca liberou o consumo e venda de drogas ilícitas e que desligava o som antes para dispersar as pessoas.

Abder Paz diz que no momento em que na cidade você não tem espaços para as pessoas, Ervilha conseguiu agregar pessoas de vários lugares, do DF e do Entorno. “Tinham mil pessoas de todas as cidades vindo para Taguatinga, revertendo o fluxo do centro”, diz.

Ao invés de ir pro Plano Piloto, para Brasília, as pessoas iam para as ruas do Mercado Sul. “Ele tem um mérito muito grande por isso. Eram boas atividades”, diz Abder. “A relação estremece, porque realmente, não comportava. era um território que não cabia tanta gente, com tanto volume de pessoas, com tanta frequência e esse distanciamento que houve com a comunidade”, explica.

 

Confusão, desinformações e equívocos

Quando se trata de jornalismo, existe uma questão chamada apuração. Trata-se de pesquisar e compreender a fundo as relações de causas e consequências sobre os fatos. Neste sentido, o portal Metrópoles produziu uma matéria em 2017 que não tratou todos os aspectos dos movimentos culturais que ocorrem no Mercado Sul.

O texto possui o subtítulo “Em Taguatinga, centro comercial construído na década de 1950 é alvo de pedido de reintegração de posse na Justiça”. Chama o processo de Josmar e MSV no sutiã da matéria e na principal denúncia da matéria, mistura Beco Pub com o Mercado Sul Vive. Nem cita o empreendimento de Ervilha, a não ser na fala de um dos ocupantes MSV.

A matéria faz um grande sopão das informações e serve a pratos ferventes. O texto trata das atividades culturais como uma coisa só, não entendendo a diversidade cultural do local, os problemas históricos enfrentados por toda comunidade como o tráfico e envolve até o caso jurídico da ocupação mercado Sul Vive.

O Metrópoles também entrevistou Abder Paz e deu a entender, no fluxo do texto, que o MSV era o responsável pelas festas. Também foi entrevistado Juvenal Reis, morador há 20 anos no Mercado Sul. O residente denunciou afirmando que o cenário de insegurança e abandono nunca estiveram tão críticos

Segundo o morador, o tráfico de drogas, o consumo de bebidas alcoólicas e festas deterioraram o espaço e afastaram os clientes das lojas que tentam sobreviver no local. Juvenal reclamou: “Hoje, temos uma comunidade totalmente refém de invasores. Tenho algumas quitinetes na rua e não consigo alugar. Tem gente fazendo sexo na calçada”, diz a matéria.

Para o senhor Heleno, que trabalha bem em frente onde era o bar, as festas foram ótimas e “eram um trem diferente”, conta ao relatar que presenciou a festa do Beco Pub sempre muito cheia. “Muita gente, muita gente, muita gente mesmo!”, enfatiza.

O tapeceiro admira o poder de mobilização de Ervilha. “O social que ele tinha era muito bom, porque era gente demais da conta. Enchia esse beco e o outro. Ficava tudo lotado isso aqui”, conta.

Ao ser perguntado se ele concordava com alguns vizinhos que não gostavam das festas por conta o som e outros problemas, Heleno diz que as festas “eram uma brincadeira sem muita responsabilidade”, no modo de ver dele, não era “adequado”.

Ele afirma que uma festa daquele porte o Mercado Sul não aguentava, pois é muito fechado para isso. “Muito espaço pequeno para uma festa daquele tamanho”, conta o trabalhador histórico do Beco. “A brincadeira real era aqui. Enchia daqui até lá”, aponta o tapeceiro para o fim do outro lado da rua, “encheu mesmo, uma loucura”.  

“E também fez sem a Admnistração saber disso. Para você ver, uma festa com aquela quantidade de gente, sem precaução nenhuma. Uma festa com aquela quantidade de gente, tinha que ter no mínimo uma viatura da polícia, uma ambulância”, relata Heleno.

Perguntado de que muita gente misturava as duas coisas, MSV com BecoPub, Heleno acredita que não. Disse que a turma da comunidade sabia que aqui [aponta para a porta do antigo BecoPub] era uma festa que não tinha nada a ver. “A não ser vizinhos da residência, porque os daqui do Mercado Sul mesmo, todo mundo sabia que o Renato é um e a ocupação é outra”, acredita.

“Esse Ervilha que veio para manchar a cultura”, afirma Flávia. Ela não gosta de jeito nenhum do produtor das festa que bombavam no Mercado. Conta que ela e o esposo, Jose Carmo, tomaram abuso da cultura produzida no Beco.

“De certa forma, muita gente acreditou que a ocupação iria resolver todos os problemas da comunidade”, conta Abder Paz. Da sustentabilidade econômica, tráfico, saúde, “mas não é bem assim, a gente não é o Estado”, afirma. “Propomos alternativas para esses problemas, mas não vamos cumprir aqui que o Estado deveria fazer”, diz o arte-educador.

Abder afirma que o desafio é dialogar com a comunidade que o problema do tráfico é de todos, se não tiverem juntos, terão muito mais dificuldade de resolver esses problemas.

Distanciamentos

Muitas operações policiais aconteceram do meio para o fim das atividades festivas de Ervilha no Mercado Sul, feitas por denúncias anônimas. Nem todas as atividades eram produzidas por ele, mas como era o dono do estabelecimento a responsabilidade o chamava. A principal reclamação era a altura do som – das músicas e pessoas. A polícia, infelizmente, sempre chegava de maneira truculenta nas festas.

Algumas vezes, o responsável e os produtores das festas eram abordados e/ou levados para prestarem esclarecimentos. Caso levados, eram soltos em seguida.

Ervilha saiu do Mercado Sul em 2016 com vistas críticas sobre seu trabalho. A comunidade ficou muito estressada por conta dos desentendimentos. A confusão foi tanta, que até hoje as festas dele no Mercado Sul são confundidas com as atividades da Ocupação MSV.

Em 2017, Ervilha abriu outro espaço na cidade: o Beco Undeground.  Ele alugou um galpão em Taguatinga Norte, perto do Mercado Norte, quase “do tamanho de todo o conjunto de lojas do Mercado Sul”, descreve o produtor. O local era adequado para o formato de festas que o produtor promovia.

Em 20 de janeiro deste ano, um acontecimento abalou o trabalho de Ervilha. Seis pessoas que participavam de uma festa no Beco Underground foram baleadas na madrugada do sábado. As vítimas, que tinham entre 18 e 27 anos, foram socorridas pelo Samu e o Corpo de Bombeiros. Aconteceram mais de 10 disparos segundo a Polícia Civil, de acordo com matéria do G1.

Ervilha foi um dos três donos do espaço cultural que foram levados à delegacia da Polícia Civil do Distrito Federal naquela madrugada. Com ele, Fábio Luíz Conceição Borges, 37 anos, e Waleska Aparecida Rocha dos anjos, 21 anos, foram presos em flagrante suspeitos de terem alterado a cena do crime e por tentarem impedir que a perícia entrasse no local no dia do incidente. Poderiam ser indiciados por fraude processual.

Segundo a matéria, dentro do local, a polícia encontrou drogas e indícios de falsificação de bebidas. A boate, de acordo com os agentes, não tinha autorização para funcionar. Ervilha e seus sócios pagaram fiança e foram liberados. Esse acontecimento o abalou muito para que continuasse a movimentação do empreendimento.

Em 2018, Ruan Guilherme César Cavalcante foi o acusado de tentativa de homicídio de seis pessoas no interior do Beco Underground. O caso vai a Tribunal do Júri de Taguatinga, na segunda-feira dia 19 de novembro. O réu segue preso desde o dia 23 do mesmo mês do acontecimento. Ruan responde também pelo crime de porte ilegal de arma de fogo.

A denúncia afirma que Ruan Guilherme estava no espaço “O Beco Underground”, quando, entre 2h e 2h30, atirou contra um desafetado. A acusação é feita pelo Ministério Público do Distrito Federal (MPDFT). Os tiros, dados em um local fechado com mais de 1,2 mil pessoas, colocaram em risco a vida de terceiras pessoas, vindo a causar lesões em seis vítimas.

Até então, o Ervilha não tinha dado nenhuma entrevista sobre o ocorrido para nenhum veículo de comunicação. Ele afirma que aprendeu muito com os ocorridos e que não parará de produzir cultura. Tinha voltado para o Mercado Sul e agora se organiza para cuidar de seu filho que está para chegar. E na época desta entrevista, disse que pretendia abrir um pequeno café no Beco da Cultura para ter uma fonte de renda.

Assim que chegou também gradiou o pequeno espaço da porta da loja, que ele também ocupava. Após descobrir que Josmar não tinha os documentos do espaço. Uma reintegração de posse do caso correu na justiça e Ervilha foi despejado no fim de outubro de 2018, com retomada de posse da loja proprietário.