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Crianças em brinquedo de bambu na Ecofeira do Mercado Sul. Foto: Davi Mello

Capítulo 6

Espaços vivos, comunidade viva

Quem visita o Mercado Sul fica deslumbrado com as cores, sensações e a diversidade estampada nas ruas, rostos, sons e relações de vizinhanças que compõem o indiscreto local em Taguatinga.

Cores que resistem nas plantas e grafites em contraste à cidade, cada vez mais acinzentadas ou visualmente poluídas por placas comerciais, grandes prédios e carros. Rostos dos mais diversos, de gente que se percebe no olho a olho pelo contato diário,até então, não isolados por muros.

“A capacidade de conviver com as diferenças aqui é grande, ganha até da UnB”, brinca um dos moradores, o mestre griô Virgílio Mota. O artesão, contador de histórias e disseminador de causos e saberes da comunidade, tem uma oficina de artesanato toda baseada em produtos feitos com saco de cimento e papelão. Ele sabe bem o que está falando.

O Beco da Cultura envolve as pessoas por diversos motivos: amizade, crença, política, trabalho, arte, afeto, mas também, vez ou outra, conflitos (algo normal para um lugar que movimenta tantas ideias).

“Aqui é tipo o Pelô! Muita energia, muitas histórias e densidade sobre tudo que já aconteceu”, conta Nara. Ela se refere ao Pelourinho, bairro de Salvador, Brasil. Localizado no Centro Histórico da cidade, atualmente é um local de cultura e turístico mundialmente conhecido.  “Pelourinho” se refere a uma coluna de pedra , em que criminosos eram expostos e castigados. No Brasil Colônia, porém, era principalmente usado para castigar pessoas negras escravizadas.

Você pode ser atraído pelos sons dos tambores (que até podem ser até de saco de papelão, aposte) ou pela simples curiosidade de entender as nuances e movimentações que ocorrem ali. Atualmente o local abriga atividades e ofícios como de costureira, borracharia, oficineiro mecânica, prato-feito, ateliê, luthieria, produtora cultural, agroecologia, gráfica, teatro, cozinha comunitária, estúdio de comunicação, manicure, cabelereiro, salão afro, ocupação… A variedade é grande.

O fato é que, pouco ainda se compreende o que é cada espaço e gente nesse lugar da cidade. Ou ainda, o que representa cada ação ou iniciativa existente ali. Se você não entra no cotidiano do Beco e presta atenção nas ideias que ali circulam, corre o risco de romantizar e acreditar que seja apenas um reduto ‘alternativo’ da cidade.

Para muitos, o Mercado Sul é um lugar que emana inspiração pelas diferentes ações e relações ali cultivadas, mas é fundamental se atentar aos desafios do existir, trabalhar e morar ali. Seja por questões básicas naturais das relações comunitárias, como necessidade de gestão de conflitos, ou questões que dizem respeito à garantia de direitos básicos como a falta de saneamento básico enfrentado pelos moradores.

A maior parte dos moradores reconhece o Mercado Sul em sua relevância histórica e cultural dentro do Distrito Federal, sobretudo por sua característica comunitária. Além de reconhecerem a importância de sua revitalização. O Centro de Ação Social em Arquitetura Sustentável Escritório Modelo da Faculdade de Arquitetura da UnB – (CASAS) realizaram, em 2017, um diagnóstico e diretrizes sobre a revitalização do antigo conjunto comercial. O documento também é conhecido na comunidade como Relatório Casas.

Fazer movimentar cultura no local, certamente não é tarefa simples. A ocupação MSV tem procedência nas memórias afetivas criadas ali. No mercado sul não se tem tudo e nem é tudo, mas experimenta da diversidade. O coletivo MSV recebe uma grande variedade de produções, eventos e iniciativas de artistas da cidade, andarilhos do Brasil e mundo. “O Beco da Cultura de portas abertas”, assim diz o emblema do movimento.

A ocupação muito menos surgiu do nada. Existem vínculos que respaldam o desejo de espaços no Mercado Sul. Nas primeiras negociações em 2015, até foram oferecido outros lugares no DF para as atividades, mas não foi acatado pelo coletivo por não fazer sentido.  Atualmente, o MSV é a iniciativa que mais articula a diversidade de ações e iniciativas culturais, ecológicas e artísticas no local.

Cultura de transformação

“A única coisa permanente é a mudança”, disse Heráclito há 500 a.C. Durante esses mais de três anos de ocupação, o MSV tem se movimentando através de mutirões para revitalizar constantemente as sete lojas e um box, mas também o espaço público da rua. Investimentos de energia e financeiro pelo acreditar na mudança, isso também é um pouco do que nos conta o asfalto e as paredes do Beco diariamente.  

São nítidas as transformações arquitetônicas e estéticas realizadas por diferentes atuantes e parceiros do Mercado Sul Vive ao longo de mais de três anos. Do grafite, à uma calçada recuperada, até a consequência das crianças brincarem com liberdade pelas ruas, percebe-se um esforço de iniciativas que procuram se amadurecer em ideologia e ação.

O MSV foi contemplada com dois prêmios em dinheiro em reconhecimento às suas ações culturais e comunitárias em sua existência.  O primeiro, logo no início, foi por intermédio do Ministério da Cultura (MinC) na gestão do João Luiz Silva Ferreira, mais conhecido como Juca Ferreira, do segundo meio mandado da ex presidenta Dilma. A seleção foi apresentada pela Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural (SCDC), gerido pela professora universitária Ivana Bentes.

A ocupação cultural Mercado Sul Vive ganhou em quarto lugar no Edital de Seleção Pública Cultura de Redes – Fomento a Redes Culturais Brasileiras Categoria Local. O prêmio de R$ 50 mil foi direcionado à entidades culturais e coletivos culturais, certificados ou não como Pontos de Cultura, visando o fomento de redes relacionadas ao setor cultural em todo o Brasil. O dinheiro foi gasto todo em reformas e em materiais para as atividades do MSV.

O outro prêmio foi em 2018, pela Secult DF. O Cultura Viva também premiou o movimento de intervenção urbana este ano pela grande quantidade de atividades realizadas, que, de acordo com Daniela, supera muitos festivais e espaços no DF.

Atualmente, cerca de vinte pessoas ainda participam das movimentações da ocupação. Uns mais outros menos. Para os mutirões, pessoas que não são fixas também integram as atividades. Todo mundo trabalha e come junto do mesmo jeito.

A pauta do existir e da existência nas cidades é urgente. Apesar de Brasília ser nova, 58 anos, espasmos de algumas de suas estruturas já deram sinais preocupantes em 2018, expressando problemas graves. Dentro de duas semanas, um prédio na Asa norte e Parte do eixo sul,  uma das principais vias de acesso ao eixo monumental, desabaram. Precisam de mudança, mas estão em responsabilidade do Governo.

No Beco, pega-se na enxada e se suja de cimento. Ocorreu de não esperarem as edificações do espaço de tantas histórias para o DF desabar.  Da mesma maneira, as mentes e corações, lugares da existência humana em que o toque do tambor alcança, no qual a cultura trabalha.

 

Diante de um cenário político nacional complexo, ocorreu a ocupação Mercado Sul Vive. No ano anterior ao impeachment da ex-presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, o DF ganhava um espaço de resistência. Em um momento de tensão federal, há 25 km do Plano Piloto, um grupo se propunha a vivenciar e compartilhar relações mais justas e solidárias na construção de outro mundo possível.

Abder Paz diz que “neste momento, um dos desafios é a luta pela garantia, o aprofundamento e o avanço dos direitos, ao mesmo tempo, que travamos a disputa na construção de sentidos e narrativas na esfera cultural da sociedade”.

Em todo esse processo, o coletivo deixa nítido que não pretende abrir mão de suas raízes, sem com isso se fechar para a possibilidade de reinvenção. “A Ocupação Cultural Mercado Sul Vive tem em seu horizonte potencializar o que foi construído até aqui, se consolidando como um espaço colaborativo a serviço da diversidade, sempre se reinventando e experimentando”, diz um ocupante.

Na caminhada, o grupo tem se referenciado nas experiências e lutas dos movimentos da cultura popular, quilombola, zapatista e Passe Livre, buscando unir perspectivas tradicionais com propostas de organização no meio urbano. “Pra mim, o Mercado Sul é um ambiente de muito aprendizado e de muitos encontros, a gente aprende muito estando aqui”, conta Nara.

Esta é a história de uma das linhas que insiste em abrilhantar beleza e resistência fora dos traçados retos, distante das estruturas do poder institucional e da política hegemônica. Um vetor fora da curva dos tempos correntes. Em última amostra, a experiência MSV insiste no direito de transformar o espaço urbano para ser mais do jeito e uso das pessoas, na busca por autonomia e sustentabilidade.

Um fio de esperança nos dias sufocantes de polaridade política e ascensão da intolerância e estagnação, mesmo no Mercado Sul, onde existem tantas diferenças. Quatro igrejas rodeiam  o Beco, uma delas até chama “Jesus Cristo Vive”, mas o convívio diário ainda caminha para a construção do respeito, ou menos da tolerância da vida da diversidade.

A história do antigo conjunto comercial retorna a uma fase mais viva. O Beco volta a ser um importante mercado no DF, não só de compra e venda, mas também de trocas. Princípios ligados ao do comércio justo e solidário são praticados entre os mais variados empreendimentos encontrados em suas ruas. As práticas ganham suporte e espaço para cultivo da economia solidária.

Um duplo movimento acontece no Mercado Sul com a ocupação. Além de resistir por habitação para cultura, almejam ressignificar lugares menosprezados. Uma luta não só pela arte, mas também pela apropriação do espaço da cidade, a fim de despertar que os lugares sejam mais humanos e menos como mercadoria.

No Mercado Sul, ou em qualquer lugar do mundo, as pessoas não querem só comida. Querem comida, diversão e arte. Querem espaço, saída da guerra dos lugares para qualquer parte. Entretanto, todo mundo sabe que para sustentar qualquer transformação para um mundo mais justo, é necessário ainda “comer muito feijão com arroz”, e no Beco, aprende-se que precisamos fazer isso juntos.