O questionamento do existir na cidade a partir de uma ocupação cultural no Distrito Federal

Capítulo 1

by | Nov 19, 2018

Sonhar e construir outra cidade

Taguatinga, Brasil – “Imagina o que acontece com uma loja fechada há mais de 15, 20 anos?”. Este é um dos questionamentos feito pelo mímico e arte-educador Abder Paz (31) sobre os oito espaços que o coletivo cultural Mercado Sul Vive (MSV) ocupou há mais três anos na cidade. Lojas abandonadas que, antes, segundo o artista, geravam problemas de saúde, segurança e outros transtornos na comunidade do Mercado Sul.

Abder atua no Beco da Cultura, como também é conhecida a localidade, há cerca de 11 anos. Nascido em Taguatinga, 25 km de Brasília e terceira maior região administrativa do Distrito Federal, o artista vive e conhece bem o cotidiano e necessidades do lugar. Assim como ele, outras pessoas que participam das movimentações cotidianas do Beco reivindicam a desapropriação de alguns imóveis que estavam em ruínas no conjunto de três blocos enfileirados de 28 lojas cada um.

O MSV tem se consolidado por meio das dinâmicas provocadas pela ocupação. O movimento reúne artistas, produtores, comunicadores e, inclusive, moradores do Mercado Sul. No início eram cerca de 30 ocupantes que, diante de uma realidade de abandono do poder público e do domínio do capital imobiliário, se organizaram e partiram para ação.

Essa diversidade de atores e atrizes reivindicam moradia, trabalho e o direito ao uso cultural dos espaços abandonados, que antes limitavam grandemente a preservação do bem estar da vida comunitária local.

O artista conta que por meio da ocupação, “o MSV tem se posicionado politicamente no entendimento de que a propriedade deve cumprir uma função social e cultural”. Para isso, buscam amparo no Estatuto da Cidade, um dispositivo legal que ainda não foi regulamentado no DF.  

O que é o Estatuto de Cidade?

O Estatuto da Cidade é o nome dado a Lei n° 10.257 de 10 de julho de 2001, no qual regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal. Esse documento “estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.” – Lei 10.257 Governo Federal.

Logo nos primeiros dias da abertura das portas, o coletivo MSV foi abordado por uma ação judicial de reintegração de posse do empresário Josmar da Costa (69), proprietário das lojas. No entanto, essa reintegração de posse não ocorreu. Diversos erros administrativos e jurídicos da abordagem impediram isto e, até hoje, o processo corre a passos lentos. As pessoas do movimento de ocupação continuam utilizando as lojas, realizando atividades culturais, educativas e ecológicas.

Lugares e suas retomadas

A ocupação surgiu três meses após o término de um coletivo de grupos de nome parecido, o Espaço Cultural Mercado Sul (ECMS). Este coletivo alugou duas lojas na comunidade por três anos , movimentando atividades ocorrendo diariamente.

Abder conta que com esse espaço foi garantido o funcionamento das ações dos vários coletivos que integravam o ECMS: Casa Moringa, Coletivo Motirõ, Gunga, Eu Livre e o Grupo de Capoeira  Semente do Jogo de Angola. O espaço supriu uma carência momentânea de lugar fixo para atividades culturais. Na época, o Ponto de Cultura Invenção Brasileira, o primeiro credenciado pelo Ministério da Cultura no local, havia suspenso suas atividades temporariamente.

Diante disso, os grupos se reuniram e alugaram duas lojas que estavam paradas. O espaço ganhou vida com reformas e programação constantes – tudo feito pelas mãos da própria comunidade. Começaram pagando R$ 900,00 no primeiro ano, nos outros dois R$ 1000,00 e quando o dono anunciou que iria subir o valor com mais R$200, a situação ficou insustentável.

Com o fim do ECMV, em novembro de 2014, os grupos culturais voltaram a ficar sem lugar para desenvolver suas práticas. Nesse meio tempo, quando o ECMS ainda estava ativo, o Invenção retomou as atividades e esta funcionando até hoje. Entretanto, o ponto não comporta todas as diferentes e diversas demandas dos grupos locais.

“Um espaço a menos, algumas pessoas tinha ido embora, os aluguéis estavam aumentando e aí surgiu a ideia da ocupação”, conta Nara Oliveira (30), designer do Estúdio Gunga. Ela participou do abrir das portas das lojas abandonadas, mas hoje é somente uma colaboradora e parceira do MSV.

As discussões sobre ocupar espaços abandonados no conjunto de 84 lojas avançavam. O objetivo era no sentido de transformar as ruínas em lugares de trabalho, cultura e moradia.

No começo de 2015, iniciou-se diálogos com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que também realiza sua militância através da ocupação de espaços ociosos de várias cidades brasileiras e reivindicam o direito à moradia.

Na época, o MTST iria ocupar seis lugares na cidade ao mesmo tempo. As lojas abandonadas do Mercado Sul se tornaram a sétima dessas ocupações dentro do DF. “Realizamos pesquisas sobre quais lojas estavam a mais tempo abandonadas, a situação de água, luz, IPTU, estado físico e documentos para estudar e justificar em quais lojas entraríamos”, conta Nara.

A noite era chuvosa quando o coletivo entrou em sete lojas e um box à meia noite do dia 5 de fevereiro de 2015, “parecia um filme”, ri a designer. Ao abrir e entrar nas lojas, os ocupantes não poderiam mais sair. A partir daí, teriam que se movimentar constantemente com atividades culturais, educativas e comunitárias. Naquela madrugada, com o barulho e movimentação das portas de ferro se abrindo, chamaram a polícia militar.

“Chegaram e falamos que era uma ocupação, que morávamos e trabalhávamos aqui em volta. Que não dava mais para sustentar essa situação de ruínas e abandono”, descreve a designer. Nisso, os policiais entenderam que não era um movimento de roubo das lojas, e sim, que era um processo político que estava acontecendo no local.

“Tivemos uma discussão para explicar o que estava acontecendo”, relata a ex-ocupante. Ela conta que alguns policiais acharam tudo aquilo uma loucura e outros apoiavam o que estava acontecendo. “Boto fé, a população tem que fazer isso mesmo”, conta Nara, “tem que botar pra quebrar!”.

A articulação entre os movimentos de ocupação MTST e MSV não durou muito. Apesar de ambos realizarem ativismo por direito à cidade, o MSV trabalha uma relação peculiar da arte com a transformação urbana. O Mercado Sul Vive propõe reinventar vidas e seus territórios com cultura. No mesmo rumo, porém, de maneira diferente, os movimentos utilizam estratégias de ocupação para pressionar instâncias do poder público e privado.

“Na época, eles [MTST] passavam por alguns rachas internos e nós não entendemos muito o que estava acontecendo, fomos nos afastando, não sabíamos muito bem como lidar”, conta a apoiadora do MSV.

Nos primeiros meses de ocupação, os vínculos com o MTST se desataram. No entanto, de acordo com Nara Oliveira, foi um elo importante para potencializar a ação dos primeiros dias de ocupação, os mais incertos de permanência.

Abandono e consequências

“Mudou bastante o Mercado Sul, porque antigamente, antes de acontecer essas atividades culturais, era só marginalidade, pé de cana, pessoas de rua”, conta Heleno Alves (64), que chegou no Mercado Sul criança, aos dez anos em 1964. Há 9 anos, ele trabalha com tapeçaria em um box em frente a uma das lojas ocupadas. “Aí chegou a turma dos teatros e melhorou bastante o convívio aqui”, relata.

Heleno conta que o abandono era péssimo para o trabalho dele. Vez ou outra, bandidos arrombavam as portas de metal até o dono chegar e chamar a polícia para tirá-los. O tapeceiro também questiona os grandes períodos das portas fechadas: “se tinha dono e estava fechada, talvez o dono não necessitava, ne?”.

Senhor Heleno, tapeceiro do Mercado Sul. Foto: Webert da Cruz 

A pressão social do esquecimento culminou na intervenção urbana MSV. A especulação imobiliária e toda consequência gerada pelo vazio, assim como em diversas cidades no mundo, tem expulsado pessoas de lugares. Não foi diferente no Mercado Sul.

Altos aluguéis, encerramento de um dos espaços de difusão cultural e a pressão das ruínas assombravam a vida dos trabalhadores e moradores. “Ninguém quer morar ao lado de um prédio abandonado”, afirma Nara.

Relatos de violência nos espaços sem uso também ocorreram. Segundo Abder Paz, quando as duas lojas do ECMS foram devolvidas para o proprietário, o dono retirou várias benfeitorias que o coletivo tinha feito, como as instalações elétricas. O arte-educador conta que, desde então, as lojas foram sendo utilizadas por traficantes que ficavam pelas ruas.

“Os meninos do tráfico começaram a entrar na loja para esconder drogas, guardar não sei o que, daí em um determinado momento tiveram uma discussão, ocorreu algo nesse sentido”, relata Abder. “Um deles foi alvo de um espancamento lá dentro da loja. Isso aconteceu nesse período em que ela ficou fechada, no meio tempo entre a entrega do imóvel e a ocupação MSV”, conclui.

O tráfico que acontece pelo Mercado Sul é atípico. “Não é só feito por pessoas de baixa renda ou de maiores dificuldades financeiras. É feito principalmente por moradores da região de Taguatinga, que moram nas redondezas, que de alguma forma, são assistidos por casa, família e tudo mais”, conta o arte-educador.

Dois corredores com saídas de um lado para o outro formam a parte central do Beco. Essa formação arquitetônica, de acordo com Abder, favorece o comércio ilegal. A rua em que ocorrem esses movimentos é onde precisa de mais revitalização, rua que localizam-se as lojas ocupadas. Antigamente o desuso favorecia com que traficantes pudessem esconder as drogas e não serem abordados pela polícia de maneira tão fácil.

Perguntado se havia um traficante específico que atuava com as vendas, a resposta foi de que tinham vários. Rua sem dono. Era rotativo, revezavam-se, com toda organização que o tráfico tem. “Funciona com o ‘da vez’”, explica Abder.

Em toda localidade no mundo, a relação do tráfico com território é muito forte. No Beco, quando o tráfico se ameniza, relatos de roubos aumentam, por exemplo. “Tá rolando muito assalto agora, porque na rua não tem mais ninguém vendendo drogas atualmente”, diz Abder. Quatro assaltos ocorreram a mão armada na terceira semana de novembro de 2018,  segundo ele.

Um trabalhador local, que não quis ser identificado, relata também que “tinha uns traficantes que, quando estavam, o Mercado Sul chegava a ser mais seguro”.

Mercado Sul em mudancas durante o tempo. Fotos: Arquivo MSV e Webert da Cruz 

Sujeira acumulada, criminalidade, surtos de dengue e até de pulgas foram vividos pela vizinhança antes da ocupação. Entre janeiro e abril de 2014, o Distrito Federal teve 4.671 casos confirmados de dengue, segundo informativo epidemiológico da Secretaria de Saúde do DF. Só no Mercado Sul, em sua limitada área de 4.875m², foram quatro casos no primeiro trimestre daquele ano, segundo moradores.

Nara conta que ao abrir uma das lojas, que antigamente era um açougue, descobriram uma enorme piscina que servia de “condomínio” para o aedes aegypti. “Por ser azulejado, a parte de perto do teto acumulava água. A gente não sabia que ali era um foco do mosquito, só descobrimos quando abrimos as lojas”, diz.

Violência, tráfico, abrigo para pessoas em situação de rua, doenças e lixo caracterizavam o local antigamente. Ambientes que prejudicavam a saúde da vizinhança em diversos aspectos.

O vazio abria portas para o descaso. De acordo com outros relatos na comunidade, as movimentações das lojas largadas tiveram diversas intensidades. Até Flavia Santos e seu companheiro, José Carmo, adventistas e moradores críticos às iniciativas culturais da comunidade confirmam: “não vou mentir, depois da ocupação melhorou um pouco”.

“Antes da ocupação, era pior com o abandono”, relata Flávia – de falatório rápido e, por vezes, confuso. “O Josmar é um safado, viu! Não sou a favor dele não! Porque ele é sem consideração”, conta abaixando o tom da voz. “Ele quer despejar um rapaz que invadiu aqui na comunidade, mas sabe o que ele faz? Se ele não arrumar ninguém para alugar, ele tranca e deixa aí, os traficantes vem tudo fumar aí de baixo”, conta.

“Ele quer deixar fechado porque não tem amor, não ta nem ai, nao sei o que ele tem na cabeça… Porque tem que ver, porque tem pessoas que tão querendo ocupar para colocar alguma arte pra população não sofrer com dengue, com tudo que já houve aqui”, relata Flávia.

“Vizinho meu teve dengue na época. Eu aqui foi por milagre, eu mais minhas filhas não tivemos”, conta aliviada. E continua: “desenvolvi uma enxaqueca crônica terrível e aceleração no coração morando aqui. Vejo uma briga, qualquer coisa nessa rua, e quero me esconder”.

“Menino, quando a gente chegou para cá, isso aqui era tudo feio”, descreve a moradora com cerca de 20 anos de Mercado Sul. “Você tinha medo de ficar aqui, as lojas eram todas abandonadas, vinha maconheiro, traficante, homem de moto de noite, mijava, fumava e nós trancados no nosso canto, sofríamos”, relata a adventista.

Sobre suas críticas ao MSV, a moradora conta que não é a favor da Ecofeira. O evento mensal de vendas de produtos ecológicos e da economia solidária na rua incomoda por conta das banquinhas na frente da sua casa. “No início, na Ecofeira, eu via o pessoal vender as coisinhas deles, não mexiam com ninguém, mas tinha muitos que não tinham sabedoria”, diz, “que botavam o sonzão, fumavam maconha”.

A Ecofeira já acontece há mais de quatro anos na comunidade. No início acontecia no bloco B, rua do Invenção Brasileira. Após ocupação, a feira de economia solidária passou um período de um ano e meio no bloco A, rua em que mora a Flávia e existe as lojas ocupadas. Após muitas confusões, em junho de 2017, a feira voltou para o bloco B.

“Eu sou a favor que fizesse a Ecofeira no quadradão, porque é público, do governo”, propõe Flávia, “mas tem que botar uma Ecofeira organizada, bonita, com pessoas inteligentes, aí eu não sou contra”.

“A cultura pode fazer na porta da cultura, aquela loja la, que eles ensinam capoeira com a cultura? Pode”, afirma a moradora. “Eu não quero que o governo toma la, porque se tomar, vai ficar fechado e volta tudo de novo”, diz “quero que apresente coisas boas, para a população, para as crianças, até pros maconheiros também saírem dessa vida do mal, porque Deus é amor, né?” conta Flávia.

Trajetórias de resistência

Com o coletivo Mercado Sul Vive, a história que iniciou há mais de cinquenta anos no lugar se ressignifica. Reconhecido por inspirar diversas organizações, o movimento se configura como uma ação coletiva, horizontal, apartidária e autogestionada.

As plantas no asfalto das calçadas, paredes que falam com seus grafites grandiosos são fortes expressões de um local que já passou por muitas transformações de tons em sua trajetória. A sensação de vizinhança, em meio a uma cidade tão grande como Taguatinga, brilha aos olhos.

Artur Sinimbu (33), permacultor e também ocupante, acredita em transformações na prática. Ele conta que os mais de três anos de ocupação significa uma ‘resistência renovada’ para movimentos que atuam com mudanças concretas na sociedade e em lugares estratégicos.

Ele diz que as histórias de resistência e luta por direito aos espaços da cidade, aquelas que aconteceram próximas a locais centrais, foram as que mais tiveram consequências tristes, como a história da região administrativa (RA) Estrutural.

A cidade citada está à 14 km de Brasília. Estrutural é a área com maior índice de desigualdade no DF em relação ao Plano Piloto. Esta informação é do Mapa da Desigualdade (2016), realizado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). O Mapa mediu e comparou dados sobre mobilidade urbana, saúde, educação, cultura, saneamento básico e meio ambiente, segurança pública, trabalho e renda de regiões administrativas do Distrito Federal com o Plano Piloto.

Como surgiu a Estrutural?

A formação dessa cidade tem sua origem a partir da presença do lixão, que atraiu catadores e catadoras de materiais recicláveis. Esses trabalhadores e trabalhadoras começaram a se instalar próximos ao local poucos anos após inauguração de Brasília. Em geral, essas pessoas se deslocavam ao lixão em busca de meios de sobrevivência e, nessa luta, foram ali alinhando seus barracos para moradia.

Algumas tentativas de remoção dessa população foram realizadas, até mesmo de forma violenta por parte da Polícia Militar do DF, ocasionando situações como o conhecido “Massacre da Estrutural”, mas as remoções não tiveram sucesso. O lixão fechou em fevereiro deste ano.

Hortas urbanas desenvolvidas pelo coletivo Becomposto, do movimento MSV. Fotos: Webert da Cruz

“Aqui estamos perto do centro de Taguatinga, uma cidade satélite já bastante consolidada, com movimentação comercial e interesse de shoppings, um tipo de comércio que não interessa pra gente”, diz Arthur.

O permacultor conta que é a ocupação que garante com que pessoas possam existir de outra forma. “Ocupamos para morar, para criar a nossa vida, aliando a resistência com a existência”, descreve.

“Existe uma insegurança jurídica muito grande para qualquer movimento social que realiza uma ocupação em um ambiente privado”, conta Daniela Rueda. “Sabemos que para a justiça, nós não valemos muito, infelizmente”, explica.

“Nosso esforço, na prática, ele ocorre no sentido de pressionarmos o poder público, construir um reconhecimento com a população no DF e, a partir disso, reconstituir e ganharmos esses espaços”, finaliza Daniela.

Hortas urbanas do coletivo MSV e Becomposto. Fotos: Webert da Cruz